Gilberto Bercovici – A inconstitucionalidade da interferência do CADE no setor de refino de petróleo

Gilberto Bercovici – A inconstitucionalidade da interferência do CADE no setor de refino de petróleo

Em artigo, professor da USP contesta acordo entre a Petrobrás e o Conselho Administrativo de Defesa Econômico, que determina a privatização de oito refinarias

Para Bercovici, os responsáveis pelo termo de acordo devem ser responsabilizados administrativa, cívil e criminalmente (Foto: Marcos Santos/USP)

Por Gilberto Bercovici, publicado originalmente no Jornal GGN

A Constituição de 1988 prevê expressamente a livre concorrência como um princípio da ordem econômica constitucional (artigo 170, IV). Ao incorporar a concorrência livre como um princípio, o texto constitucional explicitou a compreensão de que a concorrência é um meio, um instrumento de política econômica, não um objetivo da ordem econômica constitucional. Como qualquer política pública, a política de defesa da concorrência é parcial, limitada e deve ser estruturada de forma a poder cooperar com outras políticas públicas, tão ou mais importantes para a população.

Em um Estado Democrático de Direito, a atuação estatal se pauta pela legalidade, em todas as suas dimensões, estatuída de acordo com a hierarquia normativa estabelecida pela Constituição. Como ente da Administração Pública, integrante da Administração Indireta da União, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) exerce função administrativa, ou seja, o seu poder não é exercido por interesse próprio ou exclusivamente próprio, mas por interesse público. Não há autonomia da vontade para entes que exercem função pública, pois estão submetidos aos objetivos determinados previamente na Constituição e nas leis, possuindo o dever de preservar o interesse público, não o interesse exclusivo da entidade estatal ou os interesses privados de seus dirigentes. O seu poder é atribuído, por lei, para a realização dos seus deveres, de suas finalidades, também legalmente fixados.

A defesa da concorrência não pode ser confundida com a defesa dos concorrentes, de um tipo de concorrente ou de alguma estrutura de mercado.

A Lei de Defesa da Concorrência não pode ser interpretada de forma isolada do restante do ordenamento jurídico-constitucional. Se a lei atribui competência a um órgão, outro ente administrativo não pode decidir sobre o mesmo tema, sob pena de nulidade. A competência funcional sempre é atribuída por lei, não se “conquista”, nem se presume. Esta é uma garantia fundamental dos administrados, a garantia de que há uma prévia ordenação constitucional e/ou legal de competências decisórias dos vários órgãos da Administração Pública. A defesa da concorrência não pode ser confundida com a defesa dos concorrentes, de um tipo de concorrente ou de alguma estrutura de mercado. Não é possível, constitucional e legalmente, pretender que o objetivo do direito concorrencial brasileiro seja a defesa de uma determinada estrutura de mercado definida aprioristicamente. Portanto, não basta a afirmação de que a concorrência está sendo prejudicada: é necessária a indicação precisa de que mercado se trata.

No caso do refino de petróleo, a situação é ainda mais restrita à atuação do CADE, pois trata-se de setor que é monopólio por definição constitucional. Deste modo, não é juridicamente viável à Superintendência-Geral do CADE querer impor uma determinada organização de mercado ao setor de refino de petróleo. Não é viável, também, a tentativa de ampliar, a despeito do texto constitucional e da legislação vigente, a atuação do órgão de defesa da concorrência para outros setores, como o de petróleo, monopólio constitucional da União, com base nas demandas de determinados agentes econômicos ou políticos eventualmente descontentes com a estruturação constitucional e legal desta política.

O monopólio de direito é criado para a proteção do interesse público, reservando ao Estado a exclusividade daquela atividade econômica.

Visando garantir a soberania energética do país, a constitucionalização do monopólio do petróleo foi mantida e ampliada pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. Com exceção da distribuição de derivados, todas as demais atividades componentes do monopólio estatal do petróleo foram mantidas no artigo 177 da Constituição de 1988, assim como o monopólio sobre o gás natural. Em relação à sua origem, o monopólio pode ser de fato ou de direito. No monopólio de fato, ou natural, a concentração econômica se exacerba em detrimento da livre concorrência, e a ordem jurídica atua no sentido de evitar o abuso do poder econômico decorrente desta situação, conforme determina o artigo 173, §4º da Constituição. O monopólio de direito é criado para a proteção do interesse público, reservando ao Estado a exclusividade daquela atividade econômica. O conceito constitucional de monopólio é de monopólio estatal, ou público, nunca de monopólio privado. A distinção entre monopólio público e monopólio privado está, inclusive, vinculada aos objetivos econômicos da função de exclusividade, não ao regime jurídico propriamente dito. Não por acaso, o monopólio estatal não está submetido à legislação de defesa da concorrência, ao contrário dos monopólios privados. Além disto, o conceito constitucional de monopólio sempre se refere a um monopólio de direito, não de fato.

A Emenda Constitucional nº 9, de 9 de novembro de 1995, deu à União a opção de escolher entre a manutenção do sistema de atuação estatal direta ou a adoção de outro sistema, com a possibilidade de contratação de empresas estatais e privadas. A União, portanto, pode atuar diretamente no setor do petróleo, por meio de empresa estatal sob o seu controle acionário (artigo 62 da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, que garante o controle acionário da União sobre a Petrobrás). O monopólio estatal no exercício direto das atividades no setor petrolífero foi extinto, mas não o monopólio estatal sobre estas atividades. As atividades do setor petrolífero arroladas no artigo 177 da Constituição de 1988 continuam a ser monopólio estatal. No entanto, até a Emenda nº 9/1995, estas atividades só poderiam ser exercidas diretamente ou por ente vinculado à União (a Petrobrás, no caso). A partir do final de 1995, foi aberta a possibilidade de a União explorar aquelas atividades, que continuam monopólio federal por determinação constitucional, diretamente ou mediante a contratação de empresas estatais ou privadas (atual redação do artigo 177, §1º da Constituição de 1988).

O fato de uma atividade ser monopolizada legalmente, não significa que o agente econômico não possa, eventualmente, cometer infrações à concorrência ou abusar do poder econômico em atividades vinculadas ao monopólio. Por exemplo, a Petrobrás, enquanto agente da União no setor de petróleo pode abusar de seu poder econômico ou infringir a legislação de defesa da concorrência em um procedimento de compras públicas. Se isso eventualmente for constatado, a Petrobrás pode ser responsabilizada, independentemente do fato de as compras públicas serem para o fornecimento de equipamentos necessários à produção de petróleo, atividade monopolizada constitucionalmente. Neste sentido, a própria Lei nº 9.478/1997, em seu artigo 10, caput, atribui à Agência Nacional do Petróleo (ANP) competência para comunicar as autoridades de defesa da concorrência sobre indícios de infrações da ordem econômica.

“Não há é previsão constitucional e legal da aplicação da lei de defesa de concorrência à atividade de produção de petróleo em si”, afirma Bercovici (Foto: Geraldo Falcão/Agência Petrobras)

O que não há é previsão constitucional e legal da aplicação da lei de defesa de concorrência à atividade de produção de petróleo em si. O mesmo vale para o setor de refino. A ANP não pode denunciar às autoridades de defesa da concorrência uma suposta infração da ordem econômica no exercício de atividade constitucionalmente monopolizada. Não haveria sentido algum nisso. Não apenas o CADE não tem competência para impor restrições ou sanções às atividades monopolizadas constitucionalmente e legalmente pela União, como a tentativa de impor a venda de ativos à Petrobras como parte do Termo de Compromisso de Cessação de Prática firmado em 11 de junho de 2019, é uma clara violação da legalidade por parte do CADE e da Petrobrás. A cláusula segunda do referido Termo estipula que a Petrobrás se compromete a alienar integralmente até o final de 2021 a Refinaria Abreu e Lima (RNEST), a Unidade de Industrialização de Xisto (SIX), a Refinaria Landulpho Alves (RLAM), a Refinaria Gabriel Passos (REGAP), a Refinaria Presidente Getúlio Vargas (REPAR), a Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP), a Refinaria Isaac Sabbá (REMAN), Lubrificantes e Derivados de Petróleo do Nordeste (LUBNOR) e seus respectivos ativos de transporte.

No entanto, essa venda de ativos jamais poderia ter sido imposta pelo CADE por meio de Termo de Compromisso de Cessação de Prática, muito menos aceita pela Petrobrás. Trata-se de uma violação expressa à Lei do Programa Nacional de Desestatização (Lei nº 9.491, de 09 de setembro de 1997). O artigo 3º da referida lei determina que as atividades de competência exclusiva da União segundo o artigo 177 da Constituição, como o refino de petróleo, estão excluídas da alienação ou transferência de ativos previstas no Programa Nacional de Desestatização.

A atuação do CADE e da Petrobrás viola a legalidade, firmando documentos nulos de pleno direito que podem trazer sérios impactos econômicos não apenas para os acionistas da Petrobrás, mas para toda a sociedade brasileira.

Ou seja, a privatização ou alienação de ativos das empresas que exerçam as atividades de competência exclusiva da União previstas no artigo 177 da Constituição, no caso, o refino, estão vedadas expressamente por lei. Se a Lei nº 9.491/1997 proíbe, um Termo de Compromisso de Cessação de Prática firmado entre uma autarquia vinculada ao Ministério da Justiça e uma sociedade de economia mista vinculada ao Ministério das Minas e Energia não pode autorizar. Um ato administrativo não pode prevalecer sobre uma lei. No presente caso, estamos diante de uma explícita violação ao disposto na Constituição e em várias leis vigentes no país. A atuação do CADE e da Petrobrás viola a legalidade, firmando documentos nulos de pleno direito que podem trazer sérios impactos econômicos não apenas para os acionistas da Petrobrás, mas para toda a sociedade brasileira. Os envolvidos na realização do ato, o de firmar um Termo de Compromisso de Cessação de Prática ilegal e inconstitucional, certamente não só podem como devem ser pessoalmente responsabilizados administrativa, cível e criminalmente.

Em suma, não há previsão legal de instauração de procedimento investigativo com finalidade sancionatória contra a Petrobrás por ter exercido sua competência constitucional e legal de desenvolver as atividades do monopólio da União no setor de refino de petróleo (artigo 177 da Constituição e artigo 4º, II da Lei nº 9.478/1997). Não bastasse isso, a Lei nº 9.491/1997 proíbe expressamente a alienação ou transferência para a iniciativa privada às empresas estatais que exerçam atividades de competência exclusiva da União de que trata, entre outros, o artigo 177 da Constituição. Qualquer ato tendente a impor medidas restritivas ao exercício do monopólio constitucional do refino, inclusive a venda de ativos, é abusivo e, portanto, nulo, pois fora dos limites de competência dos órgãos de defesa da concorrência.

O setor de refino de petróleo é monopólio constitucional da União, portanto, imune à incidência da legislação de defesa da concorrência no exercício de suas atividades.

O CADE, por qualquer de seus órgãos, não tem competência alguma para configurar ou determinar como deve ser realizada uma determinada política pública, como é o caso da política de refino de petróleo no Brasil. Deste modo, cabe ao CADE atuar dentro dos parâmetros constitucionais e legais. Não é possível a um órgão da Administração Pública usurpar competências de outros órgãos da Administração Pública, tendo em vista a delimitação constitucional e legal de suas atribuições como órgão responsável pela política concorrencial do país. O setor de refino de petróleo é monopólio constitucional da União, portanto, imune à incidência da legislação de defesa da concorrência no exercício de suas atividades.

*Gilberto Bercovici – Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito do Mackenzie e da Uninove. Advogado.

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